abuso e prescrição

“Como você sabe que um advogado está mentindo? Seus lábios estão se movendo.” A piada, contada pelo narrador e protagonista de “O Homem que Fazia Chover” (1997), adaptado da obra de John Grisham e dirigido pelo lendário Francis Ford Coppola, retrata a imagem que a sociedade tem daqueles que a CF/88 declarou serem indispensáveis “à administração da justiça”.  

Esta fama, no mais das vezes não merecida, aponta uma incongruência inerente ao sistema jurídico que tem como pilar central a boa-fé objetiva, ou seja, a presunção de que todos os que atuam em juízo o fazem com base na verdade.

O atual CPC, em seus arts. 5º e 6º, sedimenta esta premissa ao impor àquele “que de qualquer forma participa do processo” o dever de “comportar-se de acordo com a boa-fé”, devendo todos “cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. 

O professor Paulo Cunha, citado pelo jurista lusitano António Menezes Cordeiro1, oferecia a seguinte ponderação: “Os litigantes têm de ser honestos, mas não têm de ser ingénuos. São homens, não são heróis. Postular a boa fé em termos absolutos seria excessivo. Seria impossível. (…) Não. A exigência da boa fé processual não pode ser ilimitada, indefinida.”

O que se indagará, nesta breve exposição, são os limites e consequências da atuação daqueles advogados que Piero Calamandrei chamou de mestres da esperteza.

Em particular, e inspirada pela recente decisão do Tema 1.200 do STJ3, os efeitos da prescrição causada por estratagemas empregados pelo devedor para inviabilizar o reconhecimento ou satisfação de determinado direito.

Nesta oportunidade, o Tribunal da Cidadania entendeu que a “imprescritibilidade da pretensão atinente ao reconhecimento do estado de filiação”, tratando-se de ação “ação declaratória (pura), na qual se pretende, tão somente a obtenção de uma certeza jurídica”, não “poderia conferir ao pretenso filho/herdeiro a prerrogativa de escolher, ao seu exclusivo alvedrio, o momento em que postularia, em juízo, a pretensão da petição de herança, a redundar, indevidamente (considerada a sua natureza ressarcitória), também na imprescritibilidade desta, o que (entendeu a Corte) não se pode conceber.” 

Admitida e compreendida esta premissa, alcançamos a implicação lógica que o exercício da pretensão “ressarcitória” prescinde da certeza, pela parte interessada, da própria existência do direito reclamado.

Mantendo o sigilo inerente ao processo que corre sob segredo de justiça, encontramos no plano material hipótese de caso concreto que desafia a tese firmada pelo acréscimo do elemento dolo.

Em apertada síntese, falamos de uma parte vitimada pela engenhosa fraude processual de seu genitor que, no curso de ação de reconhecimento de paternidade, conseguiu fazer com que o laboratório responsável pelo exame de DNA trocasse as amostras colhidas.

Juntado aos autos laudo negativo, levando à improcedência da ação, com sentença transitada em julgado.

Anos após o falecimento daquele requerido, sobreveio a denúncia de que a prova havia sido fraudada. Munida deste novo elemento de fato, a parte ajuizou nova ação declaratória que incluiu o único filho até então reconhecido como tal pelo de cujus, com o pedido de colheita de nova amostra de material genético através do qual o elo de parentesco poderia ser comprovado.

Esta ação, autuada antes do decurso do prazo prescricional da petição de herança, como definido no julgamento repetitivo, encontrou longa resistência do meio-irmão requerido e das instâncias ordinárias, apegadas que estavam à existência de coisa julgada que infirmaria a pretensão autoral.

A solução, com o reconhecimento da paternidade, se deu mais de doze anos após a propositura da demanda declaratória, com múltiplas decisões do STJ cuja ordem de produção da prova pretendida foi, reiteradamente, desrespeitada pela Justiça local. 

Caberá, certamente, àquela mesma Corte Superior solucionar a seguinte questão: se o Tema 1.200, ao privilegiar a noção puramente objetiva da actio nata, poderá servir de guarida àquele beneficiado pela fraude processual praticada por seu pai e, chamado a juízo, ofereceu combativa resistência à produção da única prova capaz de corrigir sanar a controvérsia. 

Em exauriente estudo do instituto da prescrição, o professor Humberto Theodoro Júnior aponta como um de seus requisitos fundamentais a inércia do titular do direito: “A inércia do titular da pretensão, que conduz à prescrição, se dá pela não dedução da pretensão em juízo, ou seja, pela não propositura da ação necessária a compelir o inadimplente a realizar a prestação devida, bem como pela não tomada de nenhuma outra providência prevista em lei que seja capaz de impedir ou interromper a marcha do prazo extintivo.” 

Esta leitura do instituto é corroborada pelo mesmo STJ em diversas oportunidades, destacando-se acórdão publicado um dia antes do repetitivo em tela, no qual a Corte consignou que a vinculação do prazo prescricional à omissão do credor “reverencia antigo entendimento jurisprudencial, no sentido de que o titular de uma pretensão somente deve ser penalizado com a sua perda se e quando caracterizada a sua inércia no exercício daquela, não podendo ser prejudicado, portanto, por eventual extrapolação de prazo legal de exercício da pretensão para a qual não tenha ele, o titular, dado causa”.

Retornando ao caso que ensejou o presente estudo, há evidente incongruência sistêmica entre a noção de que o prazo prescricional passa a fluir do início da sucessão, ainda que o herdeiro não tenha ciência de seu vínculo sanguíneo com o autor da herança, e aquela de que o prejuízo do detentor de um direito só pode advir de sua própria inércia, particularmente quando a suposta omissão no exercício decorre de circunstâncias fabricadas pela parte a quem a extinção aproveita.

Há, na obra de Humberto Theodoro Júnior, solução que reputamos de invulgar elegância e de alcance maior do que sua sucinta exposição faz presumir:

“Se o credor for impedido por dolo (astúcia do devedor, para não permitir que a existência da obrigação, ou seu vencimento, fosse conhecido do interessado), ou por coação física ou moral (sequestro, cárcere privado, ameaças graves etc.), de ajuizar a ação antes do término da prescrição, não é preciso invocar a teoria da força maior ou do motivo justo para justificar o exercício do direito fora do prazo legal.

É que o dolo e a coação, além de provocarem vício de consentimento, constituem ato ilícito, que obriga o agente a indenizar todo prejuízo causado à vítima. A prescrição seria justamente o prejuízo gerado pelo ato delituoso, cuja reparação caberia ao devedor realizar. Logo, a pretensão morta pela prescrição renasceria por fora do delito.”

Aqui se encontra o elo entre a premissa inicial acerca da boa-fé que orienta nosso ordenamento jurídico8 e os desdobramentos decorrentes da astúcia da parte que impõe empecilhos processuais, por vezes ostentando o verniz da ampla defesa, capazes de resultar no perecimento da pretensão de seu adversário.

Se a colaboração é um dever que atinge todos aqueles envolvidos no processo9, a adoção de estratégias que posterguem a realização de prova imprescindível ao reconhecimento do direito alheio para além do esgotamento do prazo prescricional deve ser considerada ilícita, na forma do art. 187 do CC, por exceder “manifestamente os limites impostos” pelo fim econômico ou social da ampla defesa.

Supera-se, assim, a omissão legislativa a respeito do dolo enquanto causa de suspensiva ou interruptiva da prescrição, garantindo àquele prejudicado a oportunidade de ver reparado o dano correspondente à extinção de sua pretensão original através de ação indenizatória. 

Estabelecido este raciocínio central, podemos testar sua integridade lógica através de sua aplicação a outras hipóteses nas quais o exercício do direito pelo devedor alcance o patamar de ilícito civil.

Propõe-se que este seja o caso do credor que abandona a execução de seu crédito após anos de tentativas frustradas de recebimento, operando-se a extinção do processo pela prescrição intercorrente, descobrir, a posteriori, engenhosa arquitetura de blindagem e desvio patrimoniais.

Sendo, como sustenta Câmara Leal, irracional “admitir-se que a prescrição comece a correr sem que o titular do direito violado tenha ciência da violação” , em um sistema jurídico que tem a boa-fé como princípio central, é inconcebível que a astúcia do devedor que, lançando mão de subterfúgios compreendidos como abusivos, seja premiada com sua absoluta exoneração.

É o caso do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, previstas no art. 50 do CC, que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica do responsável pela obrigação, para alcançar o patrimônio de seus sócios ou de outras empresas coligadas.

Assim como no exemplo da petição de herança, é da ciência a posteriori do ato ilícito que surge a pretensão de ver reparado o dano causado pelo antijurídico exercício de um direito formalmente legítimo.

Sopesados estes elementos, a conclusão que se propõe é que a vitória obtida pelo emprego de “engenhosos estratagemas” pelo astuto advogado, que vê na boa-fé senão um conceito romântico, e por isso démodé, será, invariavelmente, pírrica: idêntica obrigação à inviabilizada penderá como a Espada de Dâmocles sobre seu representado, agora “renascida” como pretensão indenizatória equivalente ao prejuízo suportado pelo credor.


1 CUNHA, Paulo A. V., Simulação processual e anulação do caso julgado, 1935, p. 22, in, CORDEIRO, António Menezes, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa, p.

2 CALAMANDREI, Piero. P. 5.

3 No qual restou firmada a tese de que “[o] prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, cuja fluência não é impedida, suspensa ou interrompida pelo ajuizamento de ação de reconhecimento de filiação, independentemente do seu trânsito em julgado”, com acórdão publicado em 28/05/2024.

4 THEODORO JÚNIOR, Humberto. P. 27.

5 REsp n. 2.045.193/DF, relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, Primeira Seção, julgado em 22/5/2024, DJe de 27/5/2024.

6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 121.

7 Nas palavras do insubstituível professor Miguel Reale, “a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências”, derivando daí “a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.”, in A Boa Fé no Código Civil, artigo de 16/08/2003, disponível em < https://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm>.

8 MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção, p. 175.

9 LEAL, Antonio Luiz da Cãmara. Da Prescrição e da Decadência, 4ª ed., Rio de Janeiro : Forense, 1982, p. 37.

Autor: Doutor Guilherme Barros

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